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OS LIVROS DIDÁTICOS E A LEGISLAÇÃO PRÓ-ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA


Tiago Carpes do Nascimento

RESUMO
Nesse artigo vou apresentar os mecanismos da legislação educacional brasileira que tornaram obrigatório o estudo da história e da cultura afro-brasileira nas escolas públicas e privadas de todo o país; as leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, depois eu vou abordar algumas questões que envolvem a problemática do estudo da África enquanto ferramenta para minimizar os efeitos do preconceito racial no Brasil e por fim irei verificar através da comparação de livros didáticos adotados em escolas da rede pública do Estado de Santa Catarina como essa questão está sendo abordado pelos mesmos.
Palavras-chave: Legislação. África. História. Livro Didático.

 1 INTRODUÇÃO

A inserção do africano no continente americano, aí incluso o Brasil, foi consequência de um processo que visava a exploração do trabalho. Esse processo que teve início no século XVI e que se estendeu até o século XIX, fez com que atualmente a população brasileira seja composta por mais de 80 milhões de afro descendentes, o que segundo dados do IBGE, representam 43,1% da população nacional, tornando o Brasil, segundo Cordova (2010), a segunda maior nação com população de origem africana, atrás apenas da Nigéria.

Contudo, apesar da inegável parcela de contribuição a nossa formação cultural o estudo do continente africano é muito reduzido dentro da historiografia brasileira. Segundo Mattos; Rios (2004), durante muito tempo, apenas a marginalização dos remanescentes da escravidão e de seus descendentes no mercado de trabalho pós-emancipação foram pontuadas e analisadas historicamente. Esse panorama começou a mudar com a criação das leis nº 10.639 em 2003 e nº 11.645 em 2008. Mas infelizmente como já é senso comum em nossa sociedade, sabemos que existem leis que “pegam” e outras não. Então justamente no sentido de verificar se as leis criadas tiveram uma efetiva aplicação em nossa sociedade é que surgiu a pesquisa que o presente artigo apresenta. As fontes consultadas são livros didáticos editados no período pós-2003. E o motivo da escolha é simples: em minha caminhada docente percebi que na maioria das vezes o livro didático representa o único material de apoio para o professor da rede pública. Assim é fundamental que o mesmo proporcione subsídios que auxiliem o professor no processo de implantação da democracia racial, objetivo fundamental das duas leis citadas.

O recorte de estudo são os livros didáticos utilizados no sexto ano do ensino fundamental. A escolha desse recorte de estudo está relacionada ao fato de ser o sexto ano do ensino fundamental uma fase de transição para a criança, já que a mesma até então terá tido uma experiência minimalista em relação à escola, tendo, por exemplo cotidianamente apenas uma professora regente de classe e esporadicamente duas outras (das disciplinas de Arte e Educação Física). Já no 6º ano esse panorama muda completamente, pois ali a cada 45 minutos um novo professor é apresentado a turma e uma nova forma de docência é utilizada, ou seja a criança é apresentada a vários métodos diferentes de ensino num curto espaço de tempo (pois que, a didática varia de professor a professor). E ao mesmo tempo, de acordo com Silva (2010) essa fase representa a entrada da criança no período que Piaget chama de operatório-formal, onde entre outras atitudes a criança passa a revelar uma necessidade a nível afetivo, de ser aceita pelo grupo de amigos. Esse grupo de amigos passa a ser o referencial para o indivíduo, passando a determinar o vocabulário, os comportamentos e também os desejos e sonhos. Por tudo isso, eu acredito ser essa uma das fases mais propícias para se atingir os objetivos para os quais as Leis nº 10.639 e nº 11.645 foram criadas.

O presente artigo foi estruturado em três partes. Na primeira parte é apresentada uma explanação introdutória que servirá de base à análise das fontes consultadas. Posteriormente apresentamos as análises individuais de cada fonte (livros didáticos) utilizada na pesquisa para, então, na parte final do artigo apresentar uma resposta plausível à pergunta-chave da pesquisa: os livros didáticos da disciplina de história utilizados nas turmas de sextos anos se adequaram satisfatoriamente à nova legislação?

2 BREVE EXPLANAÇÃO INTRODUTÓRIA

Conforme escrevemos na introdução a importância da África para o Brasil vai além da óbvia contribuição para a formação da nossa demografia. É necessário destacar que aquilo que hoje chamamos de cultura brasileira possui uma nítida influência de elementos de origem africana. Apenas a título de exemplo, podemos citar elementos culturais óbvios como o samba e a capoeira, além de palavras utilizadas na língua portuguesa falada no Brasil que têm sua origem em dialetos africanos como cachaça, moleque e fubá. Por falar em fubá, também é visível a influência africana em pratos da nossa culinária como vatapá, angu e pamonha. Nesse quesito segundo a Enciclopédia Larousse (1995) “A cozinha negra, pequena, mas forte, fez valer os seus temperos, a sua maneira de cozinhar. Modificou os pratos portugueses, substituindo ingredientes; fez a mesma coisa com os pratos da terra; e finalmente criou a cozinha brasileira […]”.

Então por que apesar de toda a importância da cultura africana a sua história é deixada de lado em nossos educandários? A resposta para essa questão é complexa, mas segundo Araújo (2009) envolve o racismo presente na sociedade brasileira e a falta de preparo dos professores. E foi justamente no sentido de amenizar os problemas provocados pela falta desses conteúdos e ao mesmo tempo tornar obrigatório o ensino da história africana, que o governo brasileiro sancionou em janeiro de 2003 a Lei nº 10.639, da qual transcrevo a seguir os dois primeiros parágrafos do artigo 26-A:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. (LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003).

A Lei nº 10.639 foi substituída no ano de 2008, pela Lei nº 11.645 que de certa forma a atualizou incluindo no currículo ao lado da obrigatoriedade do ensino da história e cultura Afro-Brasileira, a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena. A parte principal da lei está transcrita abaixo:

Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o  O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o  Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (LEI Nº 11.645, DE 10 DE MARÇO DE 2008).

No entender de Rocha; Pantoja (2004), essas leis foram fruto de 03 fatores fundamentais: a luta dos movimentos sociais negros (iniciada nos anos 1970), a mudança de paradigma na historiografia brasileira (1980) e o surgimento de uma nova fase da relação entre o Estado e a sociedade civil iniciada a partir da consolidação do processo democrático nos anos 1990.

Para entender melhor esse processo devemos olhar para o passado. Segundo Rocha; Pantoja (2004), até a década de 1970 era observada grande defasagem dos alunos negros em relação aos alunos brancos na educação básica. Repetência escolar, desinteresse por parte desses alunos, maior índice de evasão escolar, entre outros eram os principais problemas. E a causa quase sempre era atribuída a fatores extraclasse do alunado como pobreza, família menos instruída, necessidade de estudar e trabalhar ao mesmo tempo, etc. Então no início dos anos 1980 fizeram-se pesquisas específicas nessa área e os vilões encontrados foram outros: postura diferenciada por parte dos professores, inadequação do currículo escolar e, sobretudo inadequação dos livros didáticos. Ou seja, o aluno negro não crescia como aluno, pois não encontrava na escola nada com que se identificasse ou nada que lhe fosse familiar ou ao menos pertinente ao seu imaginário sociocultural. O que sobrava nesse contexto, a bem da verdade, eram fatores socioculturais extremamente negativos que provocavam a baixa estima social dessa camada da população. Foi a partir daí que segundo Gilroy (2001), passou-se a se considerar a disciplina de história como fundamental para a construção de uma imagem positiva do negro, uma espécie de resgate da sua identidade individual e coletiva, possibilitando assim ao mesmo tempo dotar o currículo de atrativos e propiciar uma elevação na autoestima do alunado afrodescendente.

Ao mesmo tempo em que essas mudanças se processavam no seio da comunidade escolar, fora dela também ocorriam mudanças significativas, principalmente no modus operandi do Estado. Segundo Cordova (2010), desde a redemocratização nos anos 1980 o governo brasileiro passou por várias fases de abertura em relação aos direitos humanos e a democratização da educação. Isso pode ser visualizado na sequência iniciada em 1989, quando houve a criação da Lei nº 7.716, que criminalizava ações resultantes de preconceito de raça ou de cor, etnia, religião e procedência nacional. Seguiu-se a ela o “Programa Nacional dos Direitos Humanos” que criado em 1996, reconheceu a importância do negro na construção histórica nacional. Ainda em 1996 criou-se a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” que entre outras resoluções criou a possibilidade de se adequar o currículo às diferentes realidades regionais brasileiras. Sendo que na mesma lei ficava expresso que o ensino de História deveria levar em conta aspectos de 03 matrizes distintas para a formação nacional: a indígena, a europeia e a africana.

Para completar essa sequência, em 1997 foram elaborados os “Parâmetros Curriculares Nacionais” que oficialmente introduziriam os “temas transversais”, onde sob a égide do tema “pluralidade cultural” repousaria a discussão da questão do reconhecimento e da valorização da diversidade cultural brasileira, que também acabava englobando toda a temática da discriminação étnica e racial, dando a escola ferramentas que, segundo Cordova (2010) a transformaram num espaço fundamental de superação desses vícios sociais.

A esse contexto de abertura e respeito a diversidade cultural veio somar-se em 2003 a Lei nº 10.639, que conforme vimos deixou explícita sua vontade: obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em todas as escolas do país. E logo depois em 2008, veio a atualização (Lei 11.645/2008) que incluía a cultura indígena. Assim ao final da primeira década do segundo milênio em relação à democratização cultural do nosso ensino aparentemente tudo ia muito bem, obrigado. Contudo em 2009, quando já haviam passado seis anos da promulgação da lei, uma reportagem veiculada pela Voz da América alardeava: “Brasil não cumpre a Lei 10.639 que obriga o ensino da História e Cultura da África, […]”. (ARAÚJO, 2009).

Essa manchete era de uma matéria que apresentava uma entrevista da coordenadora-geral de Diversidade e Inclusão Educacional da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação, Leonor de Araújo, onde ela comentava dados coletados pela Universidade Federal de Minas Gerais que mostravam que a Lei 10.639, não estava sendo cumprida na maioria das escolas brasileiras. Em determinado trecho da entrevista Leonor de Araújo afirmava que até então o que se via era uma aplicação pontual da lei por parte de alguns professores em determinadas escolas do país. Um dos motivos segundo Araújo (2009) seria a má-formação dos professores, que em sua maioria não teriam tido na grade curricular de seus cursos de graduação a disciplina de História da África. Sabendo que apenas em 2003 a disciplina tornou-se obrigatória na educação básica, seria de se esperar que houvesse mesmo certo atraso até a entrada no currículo dos cursos de licenciatura ou magistério. Contudo, mesmo sem uma formação específica na área, seria possível ao professor, mediante o uso de um bom material de apoio, implantar a lei satisfatoriamente em suas aulas. E esse justamente foi ponto que motivou minha pesquisa: como o material didático se adequou a lei?

Conforme mencionado na introdução, selecionei sete livros entre os utilizados na rede pública catarinense e procurei encontrar nessas fontes dois elementos básicos: ênfase na questão do surgimento do ser humano no continente africano e a quantidade de tópicos destinada à história dos povos africanos em cada livro. O primeiro quesito explica-se por ser um bom ponto de partida para amealhar importância ao continente africano logo no início do estudo historiográfico. E o segundo critério é básico: quanto mais conteúdo referente ao tema houver, tanto mais importante o tema se fará. Assim o resultado da pesquisa será aqui apresentado na forma de análises individuais ordenadas pelo ano da edição analisada e no caso de ano idêntico, em ordem alfabética pelo título do livro.

3 LIVRO UM

O primeiro livro analisado é intitulado “História: das cavernas ao terceiro milênio”. As autoras são duas professoras do ensino médio no estado de Minas Gerais; Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota. O livro foi publicado pela Editora Moderna e a edição que me caiu as mãos é a 2ª edição, que consta como sendo uma impressão revista datada de 2006. Ou seja três anos após a implantação da lei.

Nesse livro o primeiro dos meus critérios foi plenamente atendido, já que o capítulo que trata da origem do ser humano tem logo no início, a título de introdução um recorte de notícia veiculada em fevereiro de 2005 que trata da descoberta de fósseis antigos na Etiópia, descoberta essa que segundo a notícia reforçava ainda mais a origem africana do ser humano. A “tese do berço africano do homem” é como o livro se refere. Depois na p. 43, ao lado de um quadro com os principais fósseis encontrados, mais uma vez é dada ênfase à africanidade da origem do homem.

A respeito do segundo critério, existe um capítulo bem detalhado dedicado ao Egito, das pp. 92 até 104. E ainda dois pequenos tópicos citando outros dois povos africanos: os Cuxitas e os Berberes. Sobre a história do Egito, é sabido que ainda antes de 2003 essa civilização sempre foi abordada pelos livros escolares, contudo a diferença percebida aqui fica por conta do enfoque dado ao tema. No presente livro o Egito é bem referenciado como um povo africano, algo que nem sempre acontecia, aliás, segundo reportagem da revista Nova Escola:

O ensino de História sempre privilegiou as civilizações que viveram em torno do Mar Mediterrâneo. O Egito estava entre elas, mas raramente é relacionado à África, tanto que, junto com outros países do norte do continente, pertence à chamada África Branca, termo que despreza os povos negros que ali viveram antes das invasões dos persas, gregos e romanos. (GENTILE, 2012).

Sobre os outros dois povos citados, o Reino de Kush não foi para mim uma grande surpresa, pois depois do Egito, este sempre foi uma opção recorrente nos tópicos destinados ao estudo de povos africanos. Destaque aqui é o nível de detalhamento da narrativa histórica, recheadas por aspectos culturais como a escrita e o modo de vida desse povo. Sobre os Berberes, aí sim temos uma inovação. Raramente lembrados, eles são aqui estudados com ênfase nos aspectos históricos, mas fazendo também referências aos modernos beduínos e tuaregues.

Destaque positivo também é a seção de apoio ao professor, onde consta uma sugestão de atividade que envolve a pesquisa de palavras utilizadas pelos brasileiros cuja origem é africana. Em se realizando a atividade, esse é um bom momento para que os alunos reflitam sobre a influência africana no seu dia a dia e percebam que a mesma está presente em nosso cotidiano.

4 LIVRO DOIS

O segundo livro analisado se chama “História em Documento: imagem e texto”. A autora é Joelza Ester Domingues Rodrigues, mestre em história social pela PUC-SP. O livro foi publicado pela Editora FTD e a edição analisada foi a 1ª edição, de 2009. Uma edição que já deveria incluir os parâmetros estabelecidos pela lei nº 11.645/2008.

Sobre o primeiro quesito o livro chega a citar a origem africana do homem, mas sem muita ênfase, com a seguinte frase “Os fósseis mais antigos do Homo Sapiens foram encontrados na África, o que leva a crer que ali ocorreu nossa origem há 120 mil anos”. (RODRIGUES, 2009,p. 28). Após a frase há uma nota de rodapé onde se lê “os fósseis não permitem identificar qual era a cor de pele, o tipo de cabelo e a cor dos olhos”. A meu ver há aí dois graves erros. O primeiro ao questionar a teoria da origem africana, já amplamente aceita pela comunidade científica e o segundo, talvez ainda mais grave, dá margem para uma interpretação negativa do texto, algo como se todo africano tivesse de obrigatoriamente ser negro ou possuir cabelo “Black Power”. Assim, essa parte do livro exige que o professor faça a devida contextualização desse ponto para que o mesmo não entre em choque com os objetivos visados pela lei legislação, quais sejam eliminar ou ao menos minimizar os preconceitos vigentes contra a cultura Afro-Brasileira.

Sobre o segundo quesito, o Egito é abordado detalhadamente em cinco páginas. Nada anormal, conforme escrito anteriormente escrever sobre o Egito é praxe. A novidade aqui vem a partir da página 90, no capítulo intitulado “O que conhecemos da África Antiga além do Egito?” que aborda em detalhes a cultura e a história do reino de Kush e também alguns esparsos dados sobre o Povo de Nok. Para fins de nossa análise podemos dizer que o segundo quesito também foi satisfatoriamente cumprido nesse livro, pois conseguiu trazer ao conhecimento dos discentes dois povos que antigamente não eram lembrados.

5 LIVRO TRÊS

O próximo livro abordado em minhas análises foi “História: sociedade e cidadania” do autor Alfredo Boulos Júnior, doutor em Educação pela PUC-SP e mestre em história social também pela PUC-SP. O livro foi publicado pela Editora FTD e a edição a que tive acesso foi a 1ª edição, de 2009, impressa um ano após a aprovação da legislação atualizada.

Em relação ao primeiro quesito de minha análise esse livro em momento algum cita a origem africana do ser humano. Aliás, para além de debater sobre o evolucionismo e o criacionismo o livro emudece em relação às origens da humanidade. O capítulo 03 cita o debate criacionismo x evolucionismo e parte logo para uma resumida abordagem das diferentes espécies de hominídeos. Portanto aqui temos um fato negativo acerca do livro. Pode-se dizer que o autor perdeu uma ótima oportunidade de dirimir qualquer dúvida sobre o assunto, deixando ao professor a tarefa de buscar a prova escrita para ter algo com que ilustrar aos alunos a confirmação, em outro material que, conforme destacado acima, nem sempre está disponível na rede pública.

A respeito do segundo ponto de análise, além do sempre presente Egito é apresentado o Reino de Kush e uma citação de passagem do Reino de Axum, que é apresentado sem detalhes, apenas como o provável motivador da queda do Império Cuxita. No mais, o livro apresenta ênfase na parte visual tendo várias imagens e ilustrações no decorrer dos capítulos, mas deixa a desejar na quantidade de texto. Aparentemente as imagens ocupam um lugar que poderia ser mais bem aproveitado se trouxesse narrativas com um nível de detalhamento superior ao apresentado. Em resumo, pode-se dizer que esse livro procurou se adequar a legislação e serve satisfatoriamente de base ao professor que queira trabalhar a problemática proposta pela lei 10.639/2003.

6 LIVRO QUATRO

Na sequência temos o livro “Para entender a História” de autoria do professor Msc. Divalte Garcia Figueira e do professor universitário e doutor em História Social pela Unicamp João Tristan Vargas. A editora que publicou o livro é a Saraiva e a edição que analisei foi a 2ª, datada de 2009.

Esse livro citou de passagem na p. 35 a origem africana do ser humano, mas sem enfatizar ou mesmo explicar pormenores do fato. Parecia caso de outro livro fadado a ser negativado em minha análise. Contudo na p. 39 surpreendentemente o tema é retomado em um novo tópico intitulado “Na África, surge uma nova espécie: a nossa”. A mim pareceu como se fosse um adendo ao capítulo feito após a primeira edição, o que representaria provavelmente uma tentativa válida de se adequar a lei 10.639.

Nesse mesmo tópico um detalhe chama a atenção: os autores trazem uma breve explicação sobre a origem da variação da cor da pele, entre os indivíduos que saíram da África e os que nela permaneceram. Um tópico muito oportuno para que o professor comprove a tese da igualdade racial, usando para isso um viés metadisciplinar que parta da História e da Biologia, já que nas palavras de Ramos (2009) na abordagem metadisciplinar, as disciplinas não são o ponto de partida para a aquisição do conhecimento, mas sim a via imprescindível para que isso aconteça.

Quanto ao segundo quesito da minha avaliação, além do onipresente Egito não há nenhuma menção a outros povos africanos. O Egito inclusive é bastante detalhado. Os autores reservam vinte páginas do livro para apresentar detalhes da história e da cultura egípcia. Um verdadeiro dossiê completo. Só é uma pena que tenham esquecido os demais povos africanos, para usar uma metáfora foi como se desenhassem uma bela árvore, mas esquecessem de desenhar o chão. Faltou algo.

7 LIVRO CINCO

Prosseguindo minha avaliação chega a vez do diferente “História em projetos”, que possui um formato novo que se choca com o modelo estabelecido pelos padrões vigentes, pois direciona o conteúdo e as atividades para um projeto bimestral ao fim de cada unidade de estudo. As autoras do livro são Maria da Conceição Carneiro de Oliveira, Carla Miucci Ferraresi e Andrea Paula dos Santos, todas elas graduadas pela USP-SP. O livro foi editado pela Editora Ática e a edição que analisei foi a 2ª, datada de 2010, que devido ter sido publicada dois anos após a atualização da lei deveria atender efetivamente as exigências da legislação.

Em relação aos quesitos analisados na p. 15 existe uma atividade que expressa a origem africana do ser humano, mas essa origem não é apresentada nos textos de apoio. Contudo devido ao caráter linear e sequencial do livro cabalmente a informação chegará aos discentes, visto que pelo modelo do livro não é possível selecionar apenas algumas atividades a serem realizadas, pois o projeto final depende da realização de todas. Em relação à presença de povos africanos, esse livro ainda segue o velho padrão, deixando a maioria dos africanos fora do seu campo de visão. A exceção obvia segue sendo a civilização egípcia que abrange uma parcela bastante grande da primeira parte do livro. São exatamente 14 páginas (pp. 76-90) reservadas a explanações e extrapolações sobre a civilização dos faraós. Quanto aos demais povos africanos do período, eles foram completamente esquecidos.

Dois fatos, porém devem ser ressaltados. O primeiro é o caráter inovador do formato do livro. Desde sempre os livros didáticos de história com que convivi, primeiro como aluno e depois como professor, seguiram um padrão clássico: longos textos com narrativas históricas, algumas imagens para ilustrar o tema, um que outro documento ou texto complementar e muitas atividades. Pois bem, foi a primeira vez que tive em mãos um livro calcado em projetos bimestrais como esse. A primeira vista pareceu complexo e o fato da maioria dos professores com quem falei terem optado por não utilizar este livro, comprovam que minha impressão não foi isolada. Porém depois de ter analisado o livro detalhadamente vi que é uma boa opção para fugir do paradigma dominante; conteúdo + atividades + avaliação; tão em voga na docência moderna.

O outro fato positivo que destaco é a quantidade de conteúdo relacionado a sociedades pré-históricas brasileiras. O autor reserva um vasto capítulo (capítulo 4) aos povos indígenas brasileiros. Como a lei 11.645/2008 também se refere aos indígenas fica esse capítulo como paliativo à lei, ainda que não apague o fato da falta de outros povos africanos importantes dá margem a que o professor realize um bom trabalho em relação ao ensino da história e da cultura dos indígenas brasileiros.

 8 LIVRO SEIS

O penúltimo livro analisado foi “História e Vida Integrada” de Nelson Piletti, Claudino Piletti e Thiago Tremonte. A edição que analisei foi a 4ª edição publicada em 2010 pela Editora Ática, que por ser ter sido publicada dois anos após a promulgação da lei 11.645/2008 não surpreende ao ser um dos livros mais satisfatórios da minha análise.

Ao contrário da maioria dos livros analisado, que citam a África de relance, como que apenas para cumprir uma obrigação, o presente livro traz na página 24 um tópico intitulado “Mãe África” onde os autores enfatizam a origem africana da humanidade com a seguinte afirmação: “África. É nesse continente que se encontram nossas origens.” E para ilustrar o afirmado na sequência segue-se um mapa de bom tamanho do continente africano pontuando as descobertas arqueológicas mais antigas e espalhando-as por todo o continente o que pode ser muito bem aproveitado pelo professor que queira dar o devido destaque ao continente africano e inverter a ênfase eurocêntrica da historiografia ocidental que quando obrigada a falar da África, concentra o seu enfoque na parte superior do continente, no litoral do mediterrâneo, no que Gentile (2012) chama de “África branca” que não raras vezes é apresentada de forma a causar a impressão de que é um adendo da Europa, já que é sempre mostrada retirada do contexto existente abaixo do deserto do Saara.

Em relação ao segundo quesito, o Egito segue recebendo a maior parcela de atenção, mas outros povos africanos são citados. Aliás, esse foi o livro que trouxe o maior número de povos africanos. O capítulo 11 (p. 103 – p. 112) intitulado “A África Antiga” apresenta mapas com a distribuição dos principais grupos lingüísticos africanos e um extenso texto abordando de forma genérica o processo de formação do continente africano. E além dos recorrentes núbios do Império de Kush, o livro abre espaço para relatos históricos dos habitantes de Cartago no norte africano e do império cristão de Axum na África Oriental. O livro também é o que dá mais destaque á aspectos culturais dos povos estudados, como a religiosidade (com ênfase nas crenças do povo Iorubá – p.110).

O único ponto negativo do livro é que em relação a Lei 11.645/2008 o livro não cita aspectos da cultura indígena. Há um tópico do primeiro capítulo que relata alguns dados genéricos sobre a pré-história brasileira, mas sem citar detalhes sobre o modo de vida dos povos dessa época. Contudo como o enfoque dado a nossa pesquisa se concentra no aspecto histórico-cultural da África, podemos afirmar que esse livro foi aprovado com louvor.

9 LIVRO SETE

O último livro analisado, e também o mais recente é o volume de História da coleção “Radix: raiz do conhecimento” da Editora Scipione. A autoria é do bacharel em ciências sociais pela USP, Cláudio Vicentin. A edição que analisei foi a 1ª edição, publicada no ano de 2010.

Logo no capítulo 02 (p. 30) o autor faz referência de passagem à origem africana do ser humano quando escreve: “Grande parte dos cientistas de hoje considera que os seres humanos descendem de um ancestral comum, cujos fósseis mais antigos foram localizados ao sul do continente africano.” Digo que é uma referência de passagem, pois que é apresentada sem muita ênfase, como se não houvesse interesse em tornar esse um detalhe importante. Ainda assim essa citação atende ao nosso primeiro requisito. Algo que não ocorre em relação ao segundo ponto, pois mais uma vez o autor repete o erro de destacar apenas o Egito como povo digno de estudo no continente africano. O espaço destinado á civilização egípcia se estende da página 76 até a página 90, e ainda que não haja mecanismo textual que tente desvincular o Egito do seu continente, em nenhum outro momento o autor cita os povos africanos desse período que mantiveram relações com o reino dos faraós, embora não se furte de citar povos asiáticos de idêntica relação.

Mas nem tudo é negativo no livro de Cláudio Vicentin, a exemplo do quinto livro analisado também sobra espaço para os indígenas brasileiros. Oito páginas são destinadas a desfraldar os usos e costumes, a diversidade linguística e até mesmo breve relatos históricos de algumas tribos de ameríndios. Cumprindo assim pelo menos uma parte da Lei 11.645/2008, mesmo que não escape de uma avaliação negativa de minha parte devido ao enfoque utilizado em minha pesquisa.

 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que o livro didático é parte intrínseca da práxis educacional do docente brasileiro, e que em muitos casos ele acaba sendo a única ferramenta de apoio disponível para o professor, seria de se esperar que os livros didáticos editados no período pós-2003 estivessem completamente adequados ao que ordena a lei 10.639/2003. Algo que como vimos nem sempre ocorre. Em relação a livros mais recentes que 2008 seria natural esperar que estivessem ainda mais adequados, visto que a lei 11.645 atualizou o debate sobre o tema em 2008. Contudo ao final da pesquisa realizada podemos afirmar com certeza que nem todos os aspectos da legislação são levados em consideração pelos autores dos livros didáticos.

Dos sete livros pesquisados pudemos auferir que os quesitos analisados na minha abordagem foram plenamente cumpridos em apenas dois deles: o livro um e o livro seis. Os livros dois, quatro, cinco e sete atenderam ao primeiro quesito, sobre a origem africana do ser humano, mas a maioria pecou ao incluir apenas o Egito no rol dos povos africanos dignos de destaque. Quanto ao livro três digo que foi a grande decepção no primeiro quesito, pois nem mesmo cita a África como berço da humanidade, embora quanto ao segundo quesito inclua três povos africanos no seu raio de alcance. Essa, aliás, foi a tônica da análise: se atendia bem a um quesito, o outro era esquecido. Dessa forma se fosse possível juntar todos os acertos de cada livro em um único volume nós teríamos um livro-modelo contendo um vasto conhecimento sobre a história e a cultura dos povos africanos que representam o período de formação do continente africano, livro esse que exerceria plenamente o papel de auxílio ao professor no sentido de atingir os objetivos proposto pela legislação: construção de uma imagem positiva da cultura Afro-brasileira.

Em termos gerais pode-se alegar que o universo pesquisado não representa a totalidade dos livros editados nesse período, contudo como a opção por eles baseou-se na premissa de que eram livros utilizados nas salas de aula catarinenses, o resultado advindo das fontes consultadas não pode ser ignorado. O aprendizado que fica dessa pesquisa, portanto é que o profissional da educação precisa, mais do que nunca das habilidades do professor dos novos tempos que Ramos resume (2008, p. 27): “É necessário ‘saber muito de quase tudo’. O professor tem que […] conhecer os conteúdos conceituais, atitudinais e procedimentais”. Recomendação válida, pois se meu trabalho docente apoiar-se apenas no material didático incompleto que analisei estará fadado a ser incompleto também. É necessário um esforço para atingir o ideal daquilo que o professor Ramos (2008) chama “professor inesquecível”: alguém que saiba ter serenidade para se esvaziar e sensibilidade para aprender. Caso contrário nosso trabalho docente vai ser sempre ilusório, perpetuando o ditado popular: você finge que ensina e eu finjo que aprendo. Mas isso é assunto para outro artigo.

 11 REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Leonor de. Brasileiros Não Cumprem Lei Que Obriga Ensino da História e Cultura Africana. Uberlândia: Voz da América, 20 de agosto de 2009. Entrevista a Maria Cláudia Santos.
BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio.2.ed. São Paulo: Moderna, 2006.
CORDOVA, Tânia. História da África. Indaial: Grupo UNIASSELVI, 2010.
FIGUEIRA, Divalte Garcia; VARGAS, João Tristán. Para entender a História. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GENTILE, Paola. África de todos nós. Nova escola, São Paulo, nº 252, maio. 2012.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. 34.ed. Rio de Janeiro: UCAM, 2001.
IBGE. Série: PD336 – População residente, por cor ou raça. Disponível em <<http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=PD336&sv=32&t=populacao-residente-por-cor-ou-raca>&gt;. Acesso em 08 de agosto de 2012.
JÚNIOR, Alfredo Boulos. História: Sociedade e Cidadania. São Paulo: FTD, 2009.
LAROUSSE, Grande Enciclopédia Cultural. Sociedade e Cultura. São Paulo: Nova Cultural, 1995.
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https://eudesenholetras.wordpress.com/2009/03/05/a-reforma-protestante/
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